24 de dezembro de 2015

suponha

Suponha...
Suponha por um instante apenas, que não estávamos autorizados a imbecilizar as crianças com o esterco da sabedoria civilizada acerca de tudo.

Suponha que não estaríamos autorizados a ensebá-las até à medula dos ossos com o sarro envernizado das crenças adultas acerca do sexo, da moral, do Estado e do amor. Acerca da morte, da religião e da Pátria. Acerca da dignidade, da honra, da virtude.

Suponha que não nos seria possível comprar-lhes a imaginação e a capacidade crítica, que não nos seria possível suborná-las tão completamente como o fazemos, com essa preciosa moeda de troca que é a chantagem afectiva.

Suponha que não nos empenhávamos tanto em educá-los exclusivamente de acordo com as nossas próprias convicções pessoais, acerca de tudo. Que não nos esforçávamos com tanta diligência como normalmente o fazemos, para transformá-los nos porcos úteis, e aparentemente disciplinados,que em geral acabam por ser os bovinos estáveis, aplicados e submissos a que a nossa condição de adultos integrados, em geral nos levou.

Suponha...
Suponha que moderávamos seriamente a quantidade inumerável de expedientes, sinuosamente concebidos, que usamos a cada passo para conseguir a sua docilidade, a sua obediência às normas de comportamento e de juízo, para conseguir a sua activa cooperação em todos os rituais mágicos a que continuamente nos entregamos, sob a engomada aparência de princípios civilizados.

Suponha ainda que não estávamos autorizados a suprimir a inquietante capacidade que as crianças têm para duvidar das nossas convicções, dessas tais convicções que constituem a argamassa de mentiras, de obscenidades civilizadas  sobre que construimos os modelos ideais de Sociedade sobre que construimos, de igual modo, os nossos mundos privados e tortuosos.

Suponha ainda que as crianças estariam autorizadas a apreciar por si próprias a espessa carapaça de mitos que civilizadamente construimos acerca de tudo e a exprimirem-se livremente a esse respeito.

A supor tudo isto, o que não parece excessivo, de tão natural que seria, de tão desejado que aparentemente é, a supor tudo isto, é razoável admitir que teríamos finalmente conseguido abandonar a nossa actual situação de orangotangos a tropeçar em esboços hesitantes, rudimentares, de organização social, engasgados, continuamente engasgados com a precária consciência que temos de nós mesmos e com o desconhecimento que temos dos outros, que daí inevitavelmente resulta.

Suponha.
Suponha por outro lado que não teriam conseguido imbecilizá-lo a si da forma tão completa como provavelmente o fizeram.

Suponha que guardava ainda uma réstia de luz suficiente para se aperceber do estado de couve perfumada, do estado de rábano activo, normalizado, paralisado mas activo, a que provavelmente chegou. Suponha que conseguiria avaliar, mesmo vagamente mesmo longinquamente, a quantidade maciça de sentimentos que teve de iludir desde a infância, sob pena de ser esmagado pela imbecilidade amorosa dos adultos que o rodeavam, que nunca perceberam nada do que se passava consigo, porque nunca perceberam o que se passava com eles próprios.

Suponha que conseguia avaliar a quantidade de sentimentos, de emoções, de suspeitas intimas que teve de disfarçar, que teve obrigatoriamente de silenciar sob pena de perder o resto de afecto, possivelmente já tão magro, que os seus zelosos instrutores, amorosamente lhe dispensavam, em troca da sua submissão, da sua obediência, da sua aplicada e progressiva idiotia.
Suponha ainda que conseguiria aperceber-se, hoje, da animosidade que teve provavelmente de engolir em seco, que teve de deixar sepultada sob a idiotice das respostas que lhe davam mas sobretudo da idiotia das respostas que lhe não deram.

Suponha finalmente que cada um de nós conseguia desenterrar tudo quanto de importante se passou, durante a sua infância. Que conseguia examinar à luz do dia cada um dos episódios do seu passado.
Suponha que cada um de nós conseguia trazer à superfície e examinar claramente cada um desses episódios, em vez de tropeçar indefinidamente em pedras que não vê, em vez de se atirar com violência de encontro a muros que não pressente, em vez de apodrecer pouco a pouco pelas esquinas aparentemente invisíveis, de uma existência falhada.

Admitindo que tudo isto era possível e corrente, admitindo que tudo isso era normal e plausível, tão normal e plausível como é na ordem prática dos factos o contrário disso, seria então razoável supor que o nosso comportamento fosse hoje essencialmente distinto do que é e que e que a nossa civilização pertenceria de facto a um passado que consideramos remoto, mas que ainda hoje faz parte de um modo tão visível, do nosso presente.

"Suponha...
Suponha por um instante apenas que não estaríamos autorizados a imbecilizar as crianças com o esterco da  sabedoria civilizada acerca de tudo. Suponha que não estaríamos autorizados a ensebá-las até à medula dos ossos com o sarro envernizado das crenças adultas acerca do sexo, da religião e da Pátria..."

in "O homem no tempo" 1983

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